A proteção autoral da obra fotográfica segundo o Recurso Especial nº 1.822.619

O presente artigo trata da decisão proferida em sede do Recurso Especial nº 1.822.619-SP (“REsp”) de 18 de fevereiro de 2020, segundo a qual uma obra fotográfica disponibilizada na internet não pertence ao domínio público e a ela incidem os direitos autorais correspondentes.

Antes de adentrar ao caso em concreto, convém destacar alguns pontos relevantes do ordenamento jurídico brasileiro quanto à proteção das obras fotográficas.

 

I – Introdução aos principais aspectos jurídicos sobre a proteção de obras fotográficas

É importante salientar que o Brasil é signatário do Convenio de Berna, primeiro tratado internacional que regula a proteção de obras literárias e artísticas e os direitos dos seus autores [1].

Em virtude da adesão ao Convenio de Berna em 1922 [2], o Brasil erigiu a importância dos direitos autorais a nível constitucional, cuja proteção está refletida no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a saber:

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(…)

XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;”

A nível infraconstitucional, o sistema brasileiro salvaguarda os direitos autorais por meio da Lei nº 9.610/98 (“LDA”), cujo artigo 7º, inciso VII, protege como obras intelectuais as fotografias e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia, desde que expressas ou fixadas em qualquer suporte.

A LDA resguarda igualmente a proteção dos direitos morais e dos direitos patrimoniais de autor através dos artigos 24 e 29 respectivamente.

Vale lembrar que o sistema de direito de autor vigente no Brasil acompanha o droit d’auter de origem francês, segundo o qual o direito autoral propriamente dito é composto por dois atributos: um atrelado ao direito moral vinculado à própria pessoa do autor e, assim, denominado pela doutrina como um novo direito da personalidade, e outro atrelado à exploração econômica da obra (direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra), chamado de direito patrimonial de autor.

Os direitos morais de autor protegidos no artigo 24 da LDA consiste em um numerus clausus, ou seja, é uma lista fechada que expõe taxativamente os atributos morais detidos pelo autor da obra:

“Art. 24. São direitos morais do autor:

I – o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra;

II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra;

III – o de conservar a obra inédita;

IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

V – o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada;

VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem;

VII – o de ter acesso a exemplar único e raro da obra, quando se encontre legitimamente em poder de outrem, para o fim de, por meio de processo fotográfico ou assemelhado, ou audiovisual, preservar sua memória, de forma que cause o menor inconveniente possível a seu detentor, que, em todo caso, será indenizado de qualquer dano ou prejuízo que lhe seja causado.

§1º Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV.

§2º Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público.

§3º Nos casos dos incisos V e VI, ressalvam-se as prévias indenizações a terceiros, quando couberem.”

Em contrapartida, o artigo 29 da LDA refere-se a um numerus apertus, isto é, apresenta um rol exemplificativo acerca das modalidades de uso da obra, mediante prévia e expressa autorização do respectivo autor ou titular da aludida obra:

“Art. 29. Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como:

I – a reprodução parcial ou integral;

II – a edição;

III – a adaptação, o arranjo musical e quaisquer outras transformações;

IV – a tradução para qualquer idioma;

V – a inclusão em fonograma ou produção audiovisual;

VI – a distribuição, quando não intrínseca ao contrato firmado pelo autor com terceiros para uso ou exploração da obra;

VII – a distribuição para oferta de obras ou produções mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário realizar a seleção da obra ou produção para percebê-la em um tempo e lugar previamente determinados por quem formula a demanda, e nos casos em que o acesso às obras ou produções se faça por qualquer sistema que importe em pagamento pelo usuário;

VIII – a utilização, direta ou indireta, da obra literária, artística ou científica, mediante:

a) representação, recitação ou declamação;

b) execução musical;

c) emprego de alto-falante ou de sistemas análogos;

d) radiodifusão sonora ou televisiva;

e) captação de transmissão de radiodifusão em locais de freqüência coletiva;

f) sonorização ambiental;

g) a exibição audiovisual, cinematográfica ou por processo assemelhado;

h) emprego de satélites artificiais;

i) emprego de sistemas óticos, fios telefônicos ou não, cabos de qualquer tipo e meios de comunicação similares que venham a ser adotados;

j) exposição de obras de artes plásticas e figurativas;

IX – a inclusão em base de dados, o armazenamento em computador, a microfilmagem e as demais formas de arquivamento do gênero;

X – quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas.”

Frise-se que as modalidades de uso refletem o atributo econômico da obra e podem ser cedidas ou licenciadas a terceiros, que passam a ser os titulares ou licenciatários da obra, ao passo que os direitos morais de autor nunca podem ser cedidos nem licenciados já que estão intrinsicamente atrelados à pessoa do autor propriamente dita.

Vale ressaltar que os direitos patrimoniais estão relacionados com o prazo de proteção dos direitos de autor, que perdura durante toda a vida do autor mais 70 anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, nos termos do artigo 41 da LDA.

Uma vez expirado o prazo legal, a obra passa a estar em domínio público, quando seu uso passa a ser permitido sem o consentimento do autor, segundo o artigo 45 da LDA, desde que respeitados os direitos morais de autor.

Ademais, a proteção do direito de autor independe de registro, bastando que esteja expressado ou fixado em qualquer suporte, nos termos do artigo 18 combinado com o artigo 7º, caput, da LDA.

No mais, a LDA prevê a partir de seu artigo 102 sanções civis às violações dos direitos autorais, cuja análise deve ser combinada com o instituto da responsabilidade civil do Código Civil.

A breve introdução acima é de suma importância para entender a sistemática da proteção dos direitos de autor, servindo-se de base jurídica para a ação judicial objeto do REsp ora em análise.

 

II – Argumentos sustentados ao longo da ação judicial

Na origem, foi proposta uma “ação declaratória de propriedade intelectual de imagem cumulada com indenização por danos materiais e morais” por um fotógrafo profissional contra a Academia Joseense de Letras, com fundamento no uso de fotos sem a devida autorização prévia do autor e sem a correspondente contraprestação e indicação da autoria.

Em contestação, a ré alegou que a imagem retratada era de uma paisagem comum pública, que não estava registrada na Biblioteca Nacional e que foi disponibilizada livremente na internet sem a devida identificação da autoria estando, assim, em domínio público.

Em sede de sentença, decidiu-se pelo uso desautorizado da obra fotográfica e pelo consequente dever de indenizar materialmente o autor, porém, não reconheceu o dano moral porque o autor não comprovou um dano que afetasse sua dignidade.

Houve interposição de recurso de apelação pelo autor da obra objetivando a reforma da sentença para conceder o pedido de danos morais.

Em sede de apelação, contudo, o Tribunal de Justiça de São Paulo não concedeu os danos morais pleiteados sob o fundamento de que a imagem retratada era uma panorâmica de uma cidade livremente disponibilizada na internet, através de motor de busca, sem qualquer indicação na obra que pudesse indicar sua autoria, o que a caracterizaria como uma pertencente ao domínio público [3].

Em virtude da negativa de provimento ao recurso de apelação, sobreveio a interposição de recurso especial cuja fundamentação assentou-se em dois pilares: um referente ao princípio da reformatio in pejus, ou seja, o tribunal teria declarado a obra como pertencente ao domínio público, quando na verdade a ré já havia reconhecido tacitamente a autoria da obra, e outro quanto à inobservância dos artigos 24 e 108 da LDA referente à não compensação do dano extrapatrimonial.

O recurso especial entendeu que não houve violação ao princípio da reformatio in pejus.

Quanto ao direito material, o STJ decidiu que uma obra fotográfica disponibilizada na internet não pertence ao domínio público devendo-lhe aplicar todos os direitos de autor correspondentes, inclusive o dever de compensar os danos morais suportados pelo autor em virtude do uso desautorizado da obra.

Assim decidiu a Relatora Nancy Andrighi [4]:

“Convém sublinhar que, ao contrário do que afirmado no acórdão recorrido, o fato de a fotografia estar acessível mediante pesquisa em mecanismo de busca disponibilizado na internet não priva seu autor dos direitos assegurados pela legislação de regência, tampouco autoriza a presunção de que ela esteja em domínio público, haja vista tais circunstâncias não consubstanciarem exceções previstas na lei.

Vale referir que o próprio provedor de pesquisa apontado no aresto impugnado (Google) anuncia, ao mostrar as imagens relacionadas a qualquer busca realizada, que “as imagens podem ter direitos autorais”, sugerindo, inclusive, que se consulte o material explicativo por ele disponibilizado acerca da questão, acessível mediante o link “saiba mais”.

Na espécie, portanto, assentado que o direito moral de atribuição do autor da obra não foi observado no particular – fato do qual deriva o dever do recorrido de compensar o dano causado e de divulgar o nome do autor da fotografia – há de ser reformado o acórdão recorrido.”

Com efeito, a decisão do STJ aplicou ipsis litteris os preceitos legais vigentes ao reconhecer a incidência dos danos morais no caso concreto.

 

III – Comentários

Cumpre destacar que os direitos morais de autor são considerados in re ipsa, isto é, a lesão extrapatrimonial independe de prova objetiva e decorre da realização de um ato ofensivo, prescindido de prova.

No caso em concreto, o direito moral violado se refere ao direito do autor de ter seu nome vinculado à sua obra, conhecido como direito ao crédito, enquanto que o ato lesivo se refere ao fato de não indicar a autoria. Assim, a ofensa ao direito ao crédito, que é um direito moral, enseja necessariamente um dano moral in re ipsa.

Ainda, no tocante ao domínio público, destaca-se que tal expressão pode ter dupla interpretação. A primeira seria uma interpretação jurídica no sentido do artigo 45 da LDA ao prever que a obra será de domínio público ao expirar o correspondente prazo de proteção. A segunda se refere à análise semântica da expressão conjugada com o que ocorre na prática no mundo online, ou seja, a maioria entende que as imagens, ou qualquer outra informação, disponibilizadas nos motores de busca não tem “dono” e, portanto, estariam disponíveis publicamente para qualquer um usar.

Claramente a interpretação que se aplica ao caso concreto é a primeira.

Contudo, infere-se das decisões de primeira e segunda instâncias que houve um equívoco quanto à conceituação da expressão domínio público. O fato de as imagens terem sido disponibilizadas na internet, ainda que sem a identificação da autoria, não implica que pertençam ao domínio público, independentemente da interpretação dada.

Dessa forma, a decisão do STJ foi acertada ao reconhecer que os direitos autorais são aplicados à internet e sua inobservância pode sim resultar em um dano moral.

Não obstante, o argumento levantado pelo réu quanto ao conteúdo da imagem retratada que consistia em uma mera reprodução da paisagem não pode ser esquecido e deve ter seu valor considerado para quantificar o dano moral.

Frise-se, assim, que a incidência do dano moral deve ser proporcional à lesão suportada, aplicando-se os preceitos gerais do direito civil. Em outras palavras, a compensação do dano não pode resultar em enriquecimento ilícito da vítima, porém, ao mesmo tempo, o montante a ser indenizado deve ser suficiente para desestimular eventuais novas condutas do infrator. A análise conjunta será sopesada diante das particularidades do caso concreto.

Cabe relembrar que a LDA é de 1998, época em que o acesso à internet era restrito, e merece ser reformada urgentemente para prever as implicações jurídicas que resultam do avanço tecnológico (mídias sociais, plataformas de compartilhamento de vídeos, inteligência artificial, streaming), incluindo a previsão de sanções civis às infrações ocorridas online.

No mais, termino este artigo com uma sugestão, seja para construir uma tese, seja para reformar a LDA, consistente na incorporação de entendimentos da doutrina e da legislação estrangeira, com destaque para a lei espanhola que distingue a fotografia em obra fotográfica e em meras fotografias [5].

A diferença entre ambas reside na originalidade da fotografia e na aptidão de a fotografia ser ou não ser considerada uma obra ou ser tida como uma simples fotografia, cuja caracterização dependerá do enfoque e da percepção empregada pelo fotógrafo diante da paisagem, pessoa ou coisa a ser retratada.

Diante dessa diferenciação, caso houvesse sua incidência no ordenamento jurídico brasileiro, o argumento sustentado na demanda de que a foto retrata uma simples panorâmica de uma cidade poderia ter mais robustez e, assim, se atacaria a originalidade do conteúdo da fotografia, cuja solução mais provável demandaria prova pericial.

Por fim, independentemente da jurisprudência e da aplicação ou não de teses estrangeiras, o entendimento prevalecente é que fotografias disponibilizadas na internet estão respaldadas pela LDA e seu uso clandestino resultará em um dano moral, sendo que as circunstâncias fáticas devem ser ponderadas e levadas em consideração.

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[1] Para informações adicionais, conferir o artigo do IPlab intitulado “Principais pontos da Convenção de Berna de 1886” no link: http://iplab.com.br/principais-pontos-da-convencao-de-berna-de-1886.html

[2] Lista dos signatários ao Convenio de Berna: https://www.wipo.int/treaties/es/ShowResults.jsp?treaty_id=15

[3] TJSP, Apelação Cível nº 1025592-54.2017.8.26.0577: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?conversationId=&cdAcordao=12253053&cdForo=0&uuidCaptcha=sajcaptcha_ea94082c4e2d48dabbff27784c79fa95&g-recaptcha-response=03AERD8XoxtXiE7NCwmu85ALCD7-sh4fwU9pvh9CL_3snxz_ch44izPs_tlJqXI–nV2rAD6ptrB5ikkirQv2fbcxXMqGVlStSGt_W7hTLhqVSbbxP9HZ4S7ZIPbbhxq1b5dKUC46CRvWSl_5-0U-GcMQEp7Ca56gh82IGkqA69Ctyi3gq8dG0h_bF1jS2ZJQpg8UmVT4E0fbeaaLvU2_q79UuSLpcGjq80N41-aienC9_2_qj2qhJ3IvmvDWWDhqXpcECwJX90IZQ_TbQsJJGfYcc7fdfNkHnqrcBv0pH0P9yydAOiHx4iWo0bpej2Q0SPKRuW2qmspU9oP11iO4mT5HYLH009hPCVAtaFVdpGquBebaiRySGWRl7Uye0afBC7ngZRnds786LerqfUFX-y6zQtaKklyMjkA

[4] STJ, REsp nº 1.822.619-SP: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1912159&num_registro=201901799384&data=20200220&formato=PDF

[5] Lei de direito de autor vigente na Espanha: https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-1996-8930

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Fonte da imagem “câmera”: Image by <a href=”https://pixabay.com/users/JESHOOTS-com-264599/?utm_source=link-attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=351528″>Jan Vašek</a> from <a href=”https://pixabay.com/?utm_source=link-attribution&amp;utm_medium=referral&amp;utm_campaign=image&amp;utm_content=351528″>Pixabay</a>